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"Emir Rodríguez Monegal: Uma biografia
literária"
Por Horácio Costa
En Folha de São Paulo, 1/07/1988
p. 8-11
"Em 'Borges: uma Biografia Literária', Emir Rodríguez
Monegal identifica a escritura crítica ao objeto de análise.
Um dos problemas que vem atacando a crítica literária
contemporânea mais agudamente é o de superação
do padrão mimético-realista dominante até
hoje, por incrível que pareça, em muito do que se
escreve sob este título nas universidades e quejandos
e o consequente encontro (e posterior aceitação) de
modalidades críticas que apontem, mais ou menos intencional
ou programaticamente, a caminhos renovadores. Por "padrão
mimético-realista" na crítica literária
entendo aquele que vigiu durante todo o século passado e
em parte do presente, primo-irmão do romance naturalista
e da historiografia "científica", eminentemente
articulado a partir de uma pretensa mirada exterior e "objetiva"
do texto crítico sobre o texto literário (ou "base"),
o mais "analítica" possível, mas cuja rentabilidade
para a consumação de um discurso crítico pertinente
com a época cultural que se vive nas demais áreas
do conhecimento humano (por exemplo nas artes plásticas,
na poesía ou nas matemáticas) entrou em franca crise
ao largo da década de sessenta. Um marco divisor? Talvez
a publicação em 1960 de Sur Racine de
Roland Barthes (recebido pelo establishment cultural francês
como un discurso crítico "dadaista"). Um arcano
anterior? O mallarmeano "rien ou presque un art".
A rua Hillhouse sobe da área central do campus de Yale
para a Torre de Ciências, magnífica e cristalina, de
cuja cafetería do último andar se pode descortinar
um panorama, tido por todos como o melhor, de New Haven e sua baía.
Antes do começo da ladeira, do lado direito de quem sobe,
está a clínica médica da universidade, ande
são atendidos os pacientes em recuperação,
os doentes iniciantes e o público geral. No quarto andar,
primeiro por uma semana en março e depois por muitas outras
semanas anteriores e posteriores às operações
a que foi submetido, viveu (e finalmente morreu, no mês de
Novembro) Emir Rodríguez Monegal. O quarto espartano pouco
a pouco encheu-se de objetos pessoais, principalmente livros. O
quarto: virado para o oeste e dando sobre as copas das árvores
da Hillhouse que, aos que o visitávamos quase todos os dias,
ensinaram-nos a progressão da primavera ao outono de 1985,
da folha em embrião à folha nova ao verde pleno ao
galho novamente seco.
Logocentrismo
Sim, a tramsformação geral da representação
que a arte e a literatura modernas levaram a cabo encontrou o corpo
crítico indefeso ou talvez, pelo contrário,
demasiado defeso nos primores e nas cores de suas certezas, naquilo
que hoje em dia se convenciona chamar "pensamento logocêntrico".
Por um lado, a crítica era capaz de analisar (nomear, desmembrar,
"explicar") as obras "modernas" (fazendo portanto
ampliar, involuntaria e desesperadamente, sua distância com
relação ao objeto sobre o qual se debruçava),
mas por outro demonstrava-se incapaz de deglutí-las (quando
se aproximava demais do texto-base corria a crítica
o risco de imitá-lo, ou melhor: de mimetizá-lo,
alterando os termos mas mantendo no fundo da forma a mesma operação
da crítica tradicional). Não me refiro aqui, obviamente,
à crítica impressionista, que desconhece tempo, lugar
ou meio, constituindo-se em verdade numa pré-crítica.
Entre a postura autoritária e expletiva e a careta muda e
inclusiva oscilaram alguns dos mais considerados nomes críticos
do século. Mas no bojo da tradição moderna
a alternativa tomou corpo: basta recordar os Cahiers de Valéry,
que em muitas passagens dão o tom à mudança.
Contemplando o deserto significante dos títulos que continham
as duas prateleiras de seu quarto de doente umas edições
atrasadas do American Heritage, uns números do Boletim da
Universidade, uma conspícua Bíblia do Rei Jorge,
Emir começou a pedir-me livros de sua casa. Nenhuma dúvida
há que seu humor era mesmo fino: o primeiro deles foi Les
Illusions Perdues, de Balzac. Escandalizei-me já por
esta altura desconfiava da letalidade de sua doença
com o patetismo que o título da obra omplicava a meus olhos,
já que eu desconhecia por completo o enredo do livro. E ingenuamente
lhe propus que me pedisse um romance mais adequado com sua condição
de paciente. Por que não Stendhal?
Emir pôs-se a rir de minha ignorância, e mais que
depressa contou-me os avatares de Lucien de Rubempré, poeta
de província que busca a fama em Paris. Rubempré deixa-se
enganar pelaz razões desarrazoadas dos mundículos
literários; suas aventuras (e desventuras) permitem a Balzac
exercer sem piedade sua veia em contra da crítica, dos "mercadores
de frases", em contra dos que exercem a profissão das
letras sem paixão. Ao mesmo tempo que enumerava os Rubemprés
que haviam cruzado seu caminho, comprazia-se Emir em elogiar o gênio
balzaciano, que encontrara uma metáfora ou uma panacéia
resgatadora dos males que sofria a partir de sua (extrema, irônica)
lucidez quanto ao funcionamento do mundo literário, sob forma
de um romance que por si se mantinha como texto, para além
da constelação de conteúdos simbólicos
que o exemplo-rubempré despertava.
Sim, o que caracteriza o discurso crítico literário
tradicional se poderia resumir a uma auto-inconsciência de
si meso como linguagem (digamos, algo assim como uma incompatibilidade
ou inanição para insurgir-se contra a forma do discurso
crítico herdado), associado a uma visão ética
profunda de que o texto-base traria legitimidade a si, discurso
crítico (através de citações, excertos,
etc.), estabelecendo uma mecânica sempre de referência
a, ou ainda de dependência de, mais ou menos como uma
epífita numa árvore, um sanguessuga num dorso animal.
Pois bem, este parasitismo quintessencial e tão profundamente
enraizado a ponto de por gerações ter parecido normal
é o que gente como J. Hillis Miller em "The critic as
host" (para citar um exemplo entre muitos) denuncia. Hillis
Miller, crítico "desconstructivo" e colega de docência
de Emir em Yale (no Departamento de Literatura Comparada), propõe
uma inversão na univocidade da equação estabelecida:
a de atuar sobre o texto-base a partir de uma visão de igualdade
deste com relação ao texto crítico, tranformando-o
em parasita de seu parasita (elevado, este, à condição
de host), tendo como princípio a existência
de uma associação profunda entre o texto de ficção
(ou de poesia) e o crítico, vistos como um binômio
estreitamente jungido onde as relações de parasitismo
se dão num plano de biunivocidade, são multiplicantes
tanto no plano da leitura como no da fatura do texto e se caracterizam,
em sua essência, pela indefinibilidade, em termos absolutos.
Claro está, o que vale no plano do texto como objeto será
válido também para aquele do relacionamento autor-crítico
(visto como outro autor; como esclarecimento deste ponto, convém
referir-nos ao barthesiano "todo crítico é um
escritor"). A meu ver, neste contexto é que a
leitura de Borges: uma Biografia Literária, de Emir
Rodríguez Monegal resulta mais rentável, mais prazerosa
e, claro, mais intensa e condizente com as intenções
de seu autor.
Havia momentos de epifania. Creio que a vida no estado limite
não só os facilita como mesmo os solicita; através
deles vê-se ela viver, vida, a si própria, como se
estas epifanias integrassem toda a psicologia do doente, passado
e presente, a uma corrente mais profunda, para além de sua
trajetória, sua circunscrita temporalidade de homem. A caminho
de Hartford, onde íamos assistir a uma nova montagem de A
Tempestade, Emir de repente olhou para a paisagem certamente monótona
que cruzávamos e disse, exaltado, "é tão
verde!". Entre a clínica da Universidade e o hospital
Yale-New Haven, onde seria operado, fêz questão de
parar na galeria de arte da Universidade e comprar o "catalogue
raisonné" da coleção Dreier, encomendada
a Marcel Duchamp e doada a Yale depois de sua morte. Na última
vez que Manuel e eu fomos a Nova Iorque antes de sua morte, pediu-nos
que lhe trouxéssemos material da grande retrospectiva Boucher
que então se realizava no Museu Metropolitano. Seus olhos
brilhavam: "Boucher! Boucher! as carnes de Boucher!"
Homem sob todos os pontos de vista alerta, Emir não se
dera conta da progressão da doença que o aniquilaria
jamais soubera, por exemplo, que não existem terminais
nervosos nos tecidos que conformam o interior do corpo humano (há
exceções, claro). Nunca percebera eu antes o poder
consolador da arte com tanta nitidez, sua problemática função
de panacéia inclusive das feridas que ela mesma ocasiona.
Paternidade
A partir do "Contre Sainte-Beuve", de Proust, de certa
forma tornou-se um recurso mal visto pela crítica moderna
o referir-se à biografia do autor, no processamento de uma
análise da obra. Depois do esquematismo vicioso do século
19 em dividir a abordagem crítica entre os polos "autor"
e "obra" (tendo como horizonte uma total identificabilidade
da vida daquele em função desta, e vice-versa), em
nosso século insistiu-se na independência do texto
com relação a seu criador. A "vitória"
de Proust durou até o surgimento de novas concepções
de autoria que advieram com as noções de "textualidade"
ou ainda, da "intertextualidade", que relativizam
(muito num prolongamento, ou numa mutação, de dados
já evidentes na operação proustiana) a antiga
posição de paternidade do autor com relação
ao texto literário dando, assim, o golpe de graça
na tradicional mecânica das "influências literárias".
Some-se a elas a ainda mais radical noção de "leitura
como escrita", ou seja, de coparticipação do
leitor (ou "autor-em-embrião") na autoria mesma
do texto literário (ou crítico), e teremos duas diretrizes
segundo as quais se desenvolve o livro de Emir Rodríguez
Monegal.
Em primeiro lugar, aponte-se a reivindicação da especificidade
do relacionamento estreito entre autor e obra (como vemos, reivindicação
de cunho "revisionista", se observado em relação
à crítica exponencial-moderna), porém submetida
a um tratamento diferenciado, já que se trata de uma "biografia",
sim, mas literária. Convém aqui ressaltar,
também, um outro posicionamento de revisão:
o de apagamento das distinções genéricas tradicionais,
já que a uma biografia atribuía-se a função
de espraiarse sobre os eventos reais da vida do autor; o
estudo das leituras formativas, ou da compleição de
seu universo informacional fazia-se sempre em função
da busca de identificação de suas "influências".
Pode parecer-nos hoje em dia muito natural para a compreensão
de um escritor e homem complexo e profundamente vinculado à
memória literária da humanidade, como Borges, uma
aproximação crítica que estreite vida, obra
e leituras como parte da mesma realidade humana (ou, para
dizê-lo em "critiquês", do mesmo motor
criativo); esta relativa naturalidade, no entanto, devêmo-la,
no ãmbito da literatura latino-americana, a Emir Rodríguez
Monegal. Não nos esqueçamos que o presente livro sobre
Borges insere-se, na obra de Rodríguez Monegal, numa sequência
de estudos em que o resultado obtido nesta Biografia já
se anunciava, como no seu monumental Andrés Bello,
fruto de um labor de anos de pesquisa e organização,
ou mesmo em ensaios de menor dimensão mas de igual densidade
crítica, como o excelente "Em busca de Guimarães
Rosa".
Leitura
Em segundo lugar, é a combinação de sua visão
contemporânea do fenômeno da leitura com todo um cuidadoso
estudo da obra e do homem Jorge Luis Borges o que permite a Rodríguez-Monegal
absorver virtualidades do texto borgeano. Dessa forma, seu exercício
crítico transforma-se numa escritura "performática"
que, a nível de uma correspondência prática,
acompanha de perto o texto ao qual se refere, comentado-o no desempenho
de sua própria realidade enquanto escritura de acordo,
por certo, a uma característica do discurso pós-moderno,
como aponta Gregory Ulmer, cunhador da expressão "pós-crítica"
para caracterizar esta formalização crítica,
que põe em prática o princípio de aproximação
entre significado, significante e referente, muito na esteira do
derridiano "o significado está no uso". Ao mesmo
tempo, Rodríguez Monegal avança sistematicamente um
estudo bem-munido em termos de documentação e raciocinoo
analitico. Além de uma "biografia literária"
nos termos a que acima me referi, o livro apresenta uma amplo balanço
da obra do escritor argentino, vista não como valor estável
e acabado a partir de um determinado momento privilegiado em sua
trajetória, mas sim na medida de sua progressão, dentro
de uma trama onde o fator de vinculação entre produção
e experimentação literárias e a alusividade
aos avatares da vida pessoal mantém-se constante. Em poucas
palavras, tanto no plano dos conteúdos como no de fusão
deste à forma mesma de sua escritura crítica, o livro
de Rodríguez Monegal oferece um exemplo de clareza de princípios
metodológicos aliada ao exercício de um desempenho
narrativo excepcionalmente adequado para o objeto de estudo.
Leitor emérito de biografias toda sua vida, no período
final Emir lia intermitentemente a biografia de Mikhail Bakhtin,
escrita por Katerina Clark e Michael Holquist e publicada por Harvard
em 1984. Sua fascinação com a obra do pensador russo
datava de longe, desde que Bakhtin se convertera num fenômeno
na Paris dos anos 60. Dentro e fora de aulas, Emir costumava referir-se
a Bakhtin como um espírito afim; parecia-lhe que na leitura
implosiva do russo sobre o botim da literatura ocidental se adequava
à situação, simétrica pela condição
periférica, da expressão literária latino-americana.
Carnavalização e paródia quintessencializavam
nossa retórica regional; não por acaso de longa data
Emir notara que em volta destas duas figuras complementares organizara-se
o melhor da tradição brasileira, por exemplo: de fato,
professava uma admiração especial pelo Oswald de Andrade
do "Movimento Antropófago", de 1928, do qual divertia-se
em citar trechos inteiros (em português).
Comprei-lhe o livro na cooperativa de Yale num dia de Abril.
Na próxima vez que o vi, comentou a inadequação
do plano do livro, e de sua escritura, às idéias de
Bakhtin, das quais faz a apologia. Sem dúvida tinha consciência
que em sua biografia literária de Borges obtivera uma fusão
muito mais sutil, e completa ("bakhtiniana", para dizê-lo
numa palavra), da narrativa ao narrado.
Nota ao texto Há dois pontos que gostaria de esclarecer
para evitar mal-entendidos. O primeiro diz respeito à questão
genérica antes referida. Uma primeira transgressão
contra o padrão mimético-realista em Borges: uma
Biografia Literária se dá, por certo, no âmbito
da fusão do discurso crítico literário à
forma da "biografia" tradicional, mas além disto
se dá também num plano de travestimento de ambas estas
formas num continuum narrativo perfeitamente condizente com
o da prosa de ficção. Outra maneira de referir-me
a isto é dizer que, embora saibamos que os dados básicos
que Rodríguez Monegal maneja em seu livro advenham de uma
realidade historicamente verificável (quanto à sociedade
portenha, à vida de Borges, à suas publicações,
etc.), o tratamento dado a este material equilibra-se entre literalidade
e alusão, distribuindo por todo o relato uma pulsão
diferencializadora de coisa "literária". Não
apenas o estilo que usa Rodríguez Monegal em sua escritura
augura este efeito: também uma sistemática elisão
dos esquemas analíticos "científicos" contribui
para criá-lo. Por exemplo, uma constante utilização
de conceitos psicanalíticos freudianos que se entretece ao
texto crítico tem sua presença apenas uma ou outra
vez indicada pelo autor.
Como tônica do livro, este indistincionamento de fronteiras
conteudísticas e formais, que tornavam explícitas
as filiações genéricas das modalidades discursivas,
aponta para uma concepçao ambiciosamente renovadora do discurso
crítico-literário. De forma indireta, o livro de Rodríguez
Monegal coloca em tela de juízo o estatuto da crítica
literária como disciplina autônoma e possuidora de
um modus limitado e definido; em vez de reforçar uma
auto-contenção que enfatizaria estas características,
Borges: uma Biografia Literária advoga uma disseminação
de significados que apontam para uma auto-assunção
como discurso híbrido (ou "impuro"), reivindicando
esta hibridez como sua características mais profunda este
é o segundo ponto a que me queria referir.
Tática
Aqui, ainda, vale um esclarecimento. Obviamente, não pretendi,
ao apontar anteriormente a "performaticidade" da escritura
de Rodríguez Monegal, defender que o texto crítico
deva corresponder literalmente à forma do texto-base (isto
é, que um texto sobre Borges tenha necessariamente que ser
"borgiano", um sobre Kafka "kafkiano", outro
sobre a literatura mongol, "mongolóide"), e atacado
de performatividade descurar-se do que nele, texto crítico,
é independente ou, por um motivo tático, necessariamente
justaposto ao texto-base (por exemplo, a cadeia de fatos que conforma
a vida "comprovável" de Borges, apoiada por uma
sequência documental, de citações, referências,
entrevistas e seus desdobramentos analíticos, etc., que cobrem
a atividade do escritor dos tempos heróicos do ultraísmo
à merecida fama internacional, tem um lugar exponencial no
livro de Rodríguez Monegal). O maneirismo unívoco,
ou a univocidade maneirista (como queiram), que à guisa de
buscar novos conteúdos e uma pretensa realidade crítica
"distinta" procura esconder sua radical falta de conteúdo
(sua crise muito maior de idéias que de formas), nada tem
a ver como o tipo de operação textual à qual
me referi.
Nota ao texto Mas a última leitura importante que
Emir fêz foi sua própria vida. Digo-o em sentido figurado:
mesmo doente, por todas partes levava os cadernos onde escrevia,
com rapidez incrível, sua autobiografia. A Manuel e a mim
comentou-nos o esquema da que seria sua última e incompleta
obra (apenas teve tempo de escrever o primeiro volume e de tomar
algumas notas para o segundo, dos cinco que havia programado); parte
importante da série diria respeito às biografias que
escreveu, culminando com a literária de Borges. De fato,
nele se referiria Emir à empatia que sempre existira entre
ele e o escritor argentino, e que, de por si, "explicaria"
o tom ao mesmo tempo "causeur" e crítico que caracteriza
seu estudo sobre Jorge Luis Borges, obra e homem. Esta rara confluência
de um escritor que exerce a crítica em sua obra (Borges)
e de um crítico que insemina sua produção como
a presença cintilante da ficção (Emir) permite-nos,
ainda, perceber uma dimensão oculta mas fundamental em seu
estudo sobre Borges: a biografia literária do biografado
converte-se numa meta-biografia literária do biógrafo,
indicando, desta forma, uma total fusão entre o "paideuma"
do crítico e o de seu objeto de estudo.
Obras como a de Borges suscitam no leitor uma sensação
de "abertura final", ou seja, apresentam-se à leitura
como uma tessitura aberta entre suas distintas partes componentes
(um conto que se refere a outro conto; uma situação
ficcional que se vê comentada num outro relato; uma idéia
que é experimentada de novo e novamente em argumentos que
variam pouco mas sempre em algum aspecto fundamental, como se verdadeiras
fugas; é todo o "corpus" narrado sempre buscando
uma atualização no ato de leitura, abertura final).
Antes de desistirmos da concepção mesma de finitude
num relato borgeano independentemente de que esta não-finitude
ou mesmo que uma implacável lógica sobre o infinito
conformem o argumento do que se lê, o que somos tentados
a sentir é que "o fim está noutra parte"
(onde?). Acima enfatizei a correspondência geral do texto
crítico de Emir com relação à obra de
Borges; a característica de abertura final, como tantas outras,
não poderia ter-lhe escapado. Pois bem, até aqui falamos
a nível da literatura mesma; muito mais inquietante é
quando esta característica de abertura final escapa do ãmbito
do literário e confunde-se com seu "double", a
vida, como a vida que compartilhamos você, leitor, e eu, juntamente
com Borges ou Emir. Em momentos como os que vou descrever em seguida,
queirâmo-lo ou não, apercebemo-nos do poder persuasivo
(se é que não subversivo) da dupla Borges/Emir.
Com exatos seis meses de diferença à morte de
Emir, morreu Borges em Genebra a 14 de junho de 1986. Como não
poderia deixar de ser, um obituário bastante completo, e
provavelmente preparado com suficiente anterioridade pelas redações,
imprimiu-se nos principais jornais do mundo. No
México, um dos periódicos capitalinos(*),
entre opiniões várias de distintas personalidades
do mundo da cultura, exerceu uma ironia grátis aos olhos
dos que a interpretamos em relação aos postulados
borgeanos, que se haviam transformado também nos de
Emir.
Refiro-me a um pretenso "contato telefónico",
"mantido" (sempre no plano de uma ficção
involuntária, claro) do México a New Haven, no qual
um ainda vivo Emir "resumia" sua impressão sobre
o acontecimento do dia anterior: "El uruguayo Emir Rodríguez
Monegal, autor de una monumental biografía del escritor argentino,
señaló: "Después de Borges nadie podrá
seguir escribiendo como antes". Trechos da vida que nos
recordam, dormidos ou acordados, o debruçar-se num abismo.
Ready-made, Ironia. Até o fim, ou não-fim."
(*) El Excelsior, México D.F., Domingo, 15/6/86;
pg. 18-A.
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